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Angra Jazz 2016

 

 

Com uma história de dezoito anos, o Angra Jazz afirmou-se desde há muito com um dos mais importantes festivais de Jazz nacionais, constrangido que é pela insularidade no que isso significa da escassa presença de público exterior ao arquipélago (e mesmo à ilha), mas também dos gostos de um público menos habituado a frequentar concertos do género. Ainda assim, e contra todas as expectativas, a verdade é que o Angra Jazz possui muitos apreciadores que compram e trocam discos e que têm opiniões próprias dos amantes do Jazz, mas também músicos que se vêm afirmando como genuínos músicos de Jazz.

Serve o preâmbulo para contrariar os dois riscos que assinalei na apresentação do Angra Jazz 2016: o concerto do Ralph Alessi Baida Quartet e a estreia nacional do integral da Far East Suite de Duke Elington pela Orquestra AngraJazz.

Orquestra Angra Jazz
Se a música de Duke Ellington apresenta sempre uma enorme dificuldade: ele é um dos mais importantes compositores da História do Jazz, um verdadeiro erudito; mas alguns temas entraram já de tal forma no repertório universal que são verdadeiros clássicos. Ora a Far East Suite é uma obra raramente tocada e, como Pedro Moreira referiu, as pautas apenas recentemente foram tornadas públicas. Levar a peça ao festival constituiu o mais importante desafio da Orquestra AngraJazz e dos seus directores; mas ele foi uma aposta ganha. Dir-se-á que para o seu sucesso contribuiu a presença de dois solistas de excepção – Ricardo Toscano e Paulo Gaspar -, mas o som da orquestra confirmou o crescimento que se vem registando nos últimos anos, dois solistas a referir, Paulo Borges e Rui Melo (prejudicado pelo som em grande parte do início do concerto) e uma secção rítmica eficiente, com destaque para a pianista Antonella Barletta.
Bem estiveram, como seria de esperar, Toscano e Paulo Gaspar, a quem foi acometido o grosso dos solos, sólidos, exuberantes e bastante aplaudidos.
Antes da Far East Suite a orquestra ainda tocou três temas de Ellington, «Just Squeeze Me», «Day Dream» e «Caravan», com a presença da cantora Sara Miguel, no seu melhor no primeiro tema e com um scat dispensável em Caravan – popular tema de que a orquestra poderia ter tirado mais partido.
De negativo é necessário referir a desatenção do som, que prejudicou os primeiros vinte minutos do concerto (e os solos de Paulo Gaspar, Ricardo Toscano e Rui Melo).
Confirmando a minha observação de anos anteriores, é no repertório clássico que a Orquestra AngraJazz se sente melhor e, como disse, esta foi uma aposta ganha.


Ralph Alessi Baida Quartet
A minha apreensão quanto ao concerto de Ralph Alessi também não se justificou. Se em grande medida a música que o renovado Baida Quartet (Gary Versace substitui Jason Moran do primeiro disco e o baterista Mark Ferber substitui Nasheet Waits) tocou em Angra foi relativamente impetuosa tendo em conta o que lhe conhecemos, o público revelou uma maturidade insuspeitada (erro meu) na apreciação do concerto.
Ralph Alessi foi a Angra apresentar o novo disco – Quiver -, a começar com «Smooth Descent» e «Quiver», mas houve lugar a alguns novos temas – «F Maybe a T» ou «Blow», recuperando outros de Baida (2013), como «I Go, You Go».
Crepuscular, contemplativa, de uma beleza intensa mas fria, a música ganhava um fulgor inesperado em «Blow» ou «I Go, You Go», simultaneamente luxuriante e contida, irredutivelmente contemporânea.
 

Se os concertos da Orquestra AngraJazz e de Alessi constituíam a meu ver os riscos do festival, os restantes eram à partida apostas ganhas, e assim aconteceu.

Christian McBride
O último concerto da primeira noite do Angra Jazz esteve por conta do trio de Christian McBride, um virtuoso absoluto que se move na esfera do clã Marsalis.
Christian McBride entende o concerto como um espectáculo e o concerto de Angra não foi excepção. Entre os clássicos «Tangerine», «East of The Sun West of The Moon», «Who Can I Turn To», um original de J.J.Johnson, «Interlude», uma bonita valsa do jovem pianista Christian Sands, «Sand Dune», e alguns temas pop menos ortodoxos, «The Lady in My Life», incluído em «Thriller» de Michael Jackson, concluindo com o tema do filme «Car Wash», que remata também o disco de McBride de 2015 gravado no Village Vanguard, o espectáculo esteve sempre presente. Excessivo até, como é apanágio dos virtuosos, McBride exibe-se fazendo cantar – e cantar será mesmo o termo adequado – o contrabaixo, como nunca se ouviu.
Swing, velocidade, exibicionismo, empolgante no tema de Michael Jackson, não resistiu ao apelo fácil das palmas do público em «Car Wash».


 
Desidério Lázaro
Primeiro concerto da segunda noite do festival, confirmou em palco o prémio da crítica nacional para o disco do ano 2015, à frente da nata da terceira geração de músicos de Jazz nacionais, com um disco que evidencia não apenas os seus dotes como executantes, mas que é um marco no Jazz nacional, ambicioso na forma, exuberante, engenhoso na escrita e na combinação da composição e da improvisação ou na sensibilidade colocada na escolha dos músicos e dos instrumentos.
Sem se fixar a uma forma, Desidério joga com as possibilidades instrumentais – três sopros, dois baixos e bateria – e com as personalidades, numa forma muito ellingtoniana, e teve na actuação em Angra momentos especialmente inspirados – os dois baixos, mais clarinete baixo e sax tenor em «Silent Homage», Mário Franco desarmante em «The Moment Just Before» o vigor de Hasselberg em «Little Bugs’ Riot» ou o engenhoso solo de bateria em «Absense of White», cobrindo vários géneros e possibilidades, contando histórias e não apenas exibindo as virtudes do grupo.
Vem-se falando da maturidade do Jazz nacional – Desidério Lázaro é um dos seus valores mais consistentes.

 

Charenee Wade

Estreia da cantora em palcos nacionais, a cantora Charenee Wade levou ao palco do Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo a música de Gil Scott-Heron e Brian Jackson. Expoente da música soul/ funky, Scott-Heron é considerado um percursor do rap, pela forma falada como se exprimia e pela poesia de intervenção.
Animal de palco natural, também pelo repertório, a forma de Charenee Wade possui muito de pop, maviosa aqui, mais agressiva além, um pouco de Nina Simone, diria até que perigosamente perto de Sade ali, espraiando-se angulosamente por Betty Carter no seu melhor, mas ela é inequivocamente uma cantora de Jazz quando quer, e sabe. Bem em «Offering», bom scat em «Song of the Wind», portentosa em «Essex».
Banda eficiente a merecer mais visibilidade, um bom contrabaixista e um pianista atento em destaque.
 

The Cookers
Reunião de duas gerações de músicos, os The Cookers movem-se na área de um Jazz inequívoco dos anos sessenta. E sendo verdade que a sua música possui indelevelmente a marca do tempo, o que é extraordinário é a energia e vitalidade com que a executam.
Jazz sem surpresas, um hard-bop clássico que nunca ignora as regras, com esquemas pré-estabelecidos que fazem suceder os solistas à exposição do tema, vive muito da prestação dos seus membros, que se revelaram sempre músicos de excepção. Claro que estamos a falar de músicos do calibre de Billy Hart ou de Cecil McBee, e neles está contida uma parte significativa da História do Jazz (com quem é que eles não tocaram, entre o bop e o free?), mas o entrosamento de toda a banda foi sempre elevado.     
O grupo tocou temas dos seus cinco discos, com autorias repartidas entre Cecil McBee, «Peacemaker», George Cables «Beyond Forever» e «Farewell Mulgrew» (este último um longo lamento dedicado ao prematuramente falecido Mulgrew Miller), Billy Hart, «Teule's Redemption», mas também Harold Mabern, «The Chief» e Freddie Hubbard, «The Core», com um esquema simples onde o tema era dado ora pelos sopros em uníssonos, ora pelo piano, a que se alternavam os solos. E se os sopros se demonstraram sempre arrebatadores num concerto em que as notas jorravam a rodos, a secção rítmica esteve sempre na frente, com um Billy Hart impetuoso a desmentir os 76 anos de idade, ao lado de McBee e (81) e Cables (72), que aliavam a força com elegância, história com engenho - o momento do trio em «Beyond Forever» foi mesmo um dos momentos da noite. Mas se toda a banda esteve sempre muito alto, e poderia destacar um a um os solos de cada membro nos diversos temas, Billy Hart foi indiscutivelmente o músico da noite, justificando porque ele continua um dos bateristas mais requisitados, e também como autor e líder, da actualidade.
The Cookers ou a verdade do Jazz clássico: um grande final para o Angra Jazz 2016.

 

 

Fotos: Jorge Monjardino

(Leonel Santos esteve no XVIII AngraJazz a convite do festival)

Qui 13 Angra do Heroísmo Centro de Congressos 21.30 Orquestra Angrajazz Claus Nymark (dir), Pedro Moreira (dir), + Paulo Gaspar (cls, clb), Ricardo Toscano (sa, cl), Sara Miguel (voz), Rui Borba (sa), Micaela Matos (sa), Davide Corvelo (sa), Rui Melo (st), Mauro Lourenço (st), José Pedro Pires (sb), Márcio Cota (t), Paulo Borges (t), Bráulio Brito (t), Roberto Rosa (t), Manuel Almeida (trb), Miguel Moutinho (trb), Rodrigo Lucas (trb), Mário Melo (trb), Gonçalo Ormonde (trom), Antonella Barletta (p), Nivaldo Sousa (g), Paulo Cunha (ctb), Nuno Pinheiro (bat)
Christian McBride Trio Christian McBride (ctb), Christian Sands (p), Jerome Jennings (bat)
Sex 14 Angra do Heroísmo Centro de Congressos 21.30 Desidério Lázaro
«Subtractive Colors»

Desidério Lázaro (s), Paulo Gaspar (cla), João Capinha (s), João Hasselberg (ctb), Mário Franco (ctb), Luis Candeias (bat)

Ralph Alessi Baida Quartet Ralph Alessi (t), Gary Versace (p), Drew Gress (ctb), Mark Ferber (bat)
Sáb 15 Angra do Heroísmo Centro de Congressos 21.30 Charenée Wade Quartet Charenée Wade (voz), Oscar Perez (p), Paul Beaudry (ctb), Darell Green (bat)
The Cookers Eddie Henderson (t), David Weiss (t), Craig Handy (s), Donald Harrison (s), George Cables (p), Cecil McBee (ctb). Billy Hart (bat)

 

A apenas uns dias do arranque do Angra Jazz olho a programação para confirmar porque ele se tornou uma referência entre os festivais de Jazz nacionais.
Seis concertos em três dias (este ano adiado duas semanas por razões de oportunidade), com uma programação que tem uma preocupação de diversidade combinando o mainstream com a modernidade e onde o Jazz nacional ocupa um terço do total dos concertos, com destaque para a Orquestra Angra Jazz que vem ganhando em ambição e consistência.

Orquestra AngraJazz
O festival começa no dia 13, precisamente com a menina dos olhos do Angra Jazz, a sua orquestra, constituída exclusivamente por músicos da ilha, com a direcção sólida de Pedro Moreira e Claus Nymark, e dois convidados de peso, Ricardo Toscano e Paulo Gaspar. Com um repertório clássico, a novidade este ano é a ambiciosa programação de uma suite de Duke Ellinton, que porá as qualidades da orquestra em prova, dada a exigência da sua música.

Christian McBride Trio
A primeira noite completa-se com o trio de Christian McBride, um trio de piano menos convencional, devido ao seu centro no contrabaixo. McBride é um contrabaixista portentoso, formado no melhor do Jazz clássico na esfera de Wynton Marsalis. Música acústica, poderosa, constituirá por certo, para o público, um dos grandes momentos do festival.

Desidério Lázaro «Subtractive Colors»
O segundo dia principia com o grupo de Desidério Lázaro e o projecto que fez o melhor disco do ano passado para a crítica de Jazz nacional, «Subtractive Colors».
Desidério é um dos mais sólidos saxofonistas de Jazz nacionais, e este projecto é inquestionavelmente o seu melhor disco e também onde se torna evidente o seu engenho como compositor. A utilização da formação de forma singular das potencialidades da formação em composições verdadeiras, dois contrabaixos que se complementam e não se sobrepõem, a extracção de trios ou quartetos do grupo para algumas composições, combinações instrumentais menos vulgares, fazem de Subtractive Colors um grande disco.

Ralph Alessi Baida Quartet
O Ralph Alessi Baida Quartet constitui o momento mais arriscado (uma vez mais falando do público) da programação do Angra Jazz 2016, mas também – digo eu - provavelmente o momento mais estimulante do festival. Alessi é um trompetista muito cerebral e o quarteto que apresenta em Angra reúne um grupo de intocáveis. Música que privilegia a composição, não deixará de revelar os dotes de improvisador de Drew Gress, a sensibilidade de Gary Versace ou a segurança de Mark Ferber. A modernidade fechará o segundo dia do Angra Jazz.

Charenée Wade Quartet
Estreante em Portugal é a jovem cantora Charenée Wade, que tem como referências ter tocado com Rufus Reid e Eric Reed, Aaron Diehle ou Tia Fuller e um repertório clássico que inclui a música negra soul/funk de Gil Scott–Heron, que tem explorado recentemente. Aguarda-se uma boa surpresa.

The Cookers
O festival encerra com os The Cookers (nome inspirado num disco do trompetista Lee Morgan), um grupo de veteranos, que inclui Billy Hart, George Cables, Cecil McBee e Eddie Henderson, mais David Weiss, Craig Handy e Donald Harrison. Música que radica na tradição, o Jazz inquestionável, por quem nasceu no Jazz e Jazz sempre respirou.

Leonel Santos

1 Out 2016